O Dia em que um Livro Salvou Minha Vida

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E as pessoas foram surgindo não sei de onde nem como apareceram. Olho ao redor, analiso a situação e tenho que me decidir rápido. Arriscar ficar horas esperando um ônibus que eu pudesse voltar pra casa com o mínimo de dignidade, ficando vulnerável aos ventos cortantes e a chuvas que gelam os ossos enquanto o espero ,como no dia anterior, ou iniciar uma bela caminhada rumo ao primeiro ponto.

Prefiro a segunda opção. Tenho que me apressar, “se escurecer”, penso, “ficarei receosa de ir andando sozinha ate o ponto” então seja qual for a minha decisão, terei que agir de imediato.

Vou seguindo sozinha, tento retirar qualquer resquício de inocência do meu semblante, faço uma cara de superioridade, franzo o cenho e me imagino como uma megera dessas novelas que passam por ai. A encenação é necessária, afinal o caminho é longo e praticamente não há nada ao redor. Passo por construções a pouco finalizadas e outras em estágios iniciais. Verifico se não há sombras que denunciem algum tarado se aproximando sorrateiramente e reparo nos homens sentados perto de vários carros estacionados, por fim, acho que eles não oferecem perigo aparente e vou indo, centrada, torcendo para o lusco-fusco durar mais alguns momentos ate eu chegar ao ponto que já avisto ao longe.

Por fim, cheguei. Aqui há mais possibilidades de conquistar um assento vazio no ônibus, mas da mesma forma que no outro ponto, consigo ainda me sentir em um mundo infestados por zumbis e logo eles surgem apressados, quando o primeiro ônibus se aproxima. A multidão caminha às cegas, colando-se uns aos outros como se por acaso se desprendesse da grande massa, vagariam noite afora, com os braços caídos e com a cabeça pendendo debilmente de lado.

É como um funil, a multidão desemboca na porta do ônibus cada qual garantindo que ninguém roube o seu lugar, agarrando-se aos ferros do veículo, avançando, testando se o indivíduo da frente reagirá ou não a ameaça de ultrapassagem. Torço para que a maior parte das pessoas presentes ali vá em outros ônibus que não o meu, fico ali fazendo minha prece egoísta silenciosamente.

Outro ônibus aproxima-se, e agora é o meu, aliás, a única linha disponível que eu posso usar. Vou à frente como os outros, praticamente no meio da avenida. Aprendi a não ficar pra trás, esperando educadamente a minha vez de subir no busão, como todos ali, também quero me sentar e fazer a longa viagem de maneira mais confortável possível, porém, procuro sempre manter pelo menos, uma distância mínima do passageiro diante de mim, mas inevitavelmente, as vezes é necessário uma atitude mais bruta quando pessoas desavisadas simplesmente tentam pular na sua frente oferecendo empurrões gratuitos a todos ao redor. Dessa vez porém, foi mais tranquilo, as pessoas pelo menos não se desesperaram tanto assim.

Finalmente após escolher, (olha que privilégio), um lugar que mais me parecesse confortável sento e abro o livro. Embarco na leitura. É difícil me concentrar, há carros buzinando, o trânsito está completamente caótico, uma ambulância fica parada paralela ao meu lugar no ônibus, sua sirene me ensurdece, mas é só assim, com o ruído do ônibus abafado por esse barulho estridente que finalmente me concentro no que estou lendo.

Horas se passam e eu não percebo, olho pela janela e praticamente ainda não andamos quase nada. “Pelo menos tenho um livro aqui comigo”, sorrio internamente, e penso que cogitei deixá-lo em casa hoje e fico satisfeita por ter mudado de ideia a tempo. Meu corpo apresenta sinais de fome, verifico meu estoque de comida na mochila, e ahã! Lá esta ela escondida. As bolachas recheadas até que caem bem e mais uma vez penso que quase comprei um pão de queijo no horário de intervalo da faculdade, mas hoje foi o dia de uma série de decisões intuitivas. Doce! Como gostaria de tomar um copo d’água, muita água, não é nem um pouco bom passar sede, ficar caçando saliva pra ver se essa sensação de boca totalmente ressecada é amenizada… Bom, pelo menos não passarei vontade de fazer xixi, algo que me incomodaria infinitamente mais.

Após esse intervalo, em que saboreei meus biscoitos enquanto observava as pessoas saindo de seus ônibus e andando pelas ruas, assim mesmo, entre os carros e olhei para motoristas do lado de fora de seus veículos desligados, parados a porta, como quem observa uma noite estrelada na varanda de suas casas. Bom… Hora de voltar ao meu livro.

Clare Abshire e Henry DeTamble voltam a me fazer companhia, e fico muito satisfeita de estar neste momento justamente lendo os capítulos finais de “A Mulher do Viajante do Tempo” (Breve, crítica aqui no Colorindo Nuvens). O que prende a minha atenção completamente. Percebo que estaria muito desmotivada e com um enorme sentimento de impotência se fosse obrigada a esperar horas parada dentro de um ônibus, sem nada para fazer. Pelo menos, com um livro em mãos senti que não estava desperdiçando longas horas do meu dia.

Foi somente quando alguma senhora gritou lá da frente do ônibus “Motorista, vai devagar pelo amor de Deus” que levanto meus olhos do livro, percebo que agora, num trecho sem trânsito o motorista esta correndo a todo vapor e observo os passageiros de pé rindo do comentário da mulher. Rindo de maneira tão doentia, distorcida que só aquelas pessoas que estão a quase 3 horas em pé em um ônibus são capazes de produzir.

O barulho é geral, xingamentos são pronunciados, mas a maioria está zoando mesmo. Aproveitando toda cena, logo alguém se anima a inundar o ônibus com o melhor do pagode distorcido, pagode normal,na minha opinião, já é ruim, imagine então um vindo de um celular que mais parece um rádio mal sintonizado, sinto como se o som estivesse saindo de uma lata de Coca- cola amassada, desfigurada.

Depois de várias melodias (chamarei assim) me desencorajo a continuar a lendo, a algazarra no ônibus esta muito alta e o motorista faz o veículo voar pelo asfalto irregular e meu livro treme em minhas mãos. Guardo-o e fico a pensar nas pessoas que se amontoam a minha volta. Faz-se um momento de silêncio, o povo acha que finalmente a pessoas acometida por um momento de bom-senso desligou o celular, os passageiros gritam em comemoração”eeeeeeeeeeeE” em coro, foi ate que engraçado, patético, trágico, mas de certa forma cômico. Só não sabiam eles que o momento de ‘silêncio’ era apenas o intervalo entre uma música e outra.

Acabei me perdendo entre meus próprios pensamentos no restante da viagem, imaginando que o meu dia poderia dar uma história para o colorindo, e então comecei a montá-la mentalmente. Reflito o livro que carrego, o meu único companheiro e penso que ele acabou salvando meu dia, e sendo mais exagerada posso dizer que ele salvou a minha vida nesse dia caótico.

Quando enxergo de fato, a paisagem ao meu redor, já estou praticamente perdendo o meu ponto, me levantei rapidamente, desci do ônibus ainda meio atordoada sem saber ao certo que direção tomar, mas então acho finalmente o caminho de casa, ando pelas ruas frias, sentindo a garoa no rosto e pensando no meu namorado preso ainda em algum lugar do trânsito de São Paulo, tão longe de mim.

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